domingo, 7 de agosto de 2011

Lutando contra escorpiões


Quantos escorpiões encontramos em nossas vidas? Quantas ferroadas levamos? Quanto tempo demoramos a adquirir coragem para matá-los?
O dia amanheceu caloroso e receptivo naquele sábado, aos vinte dias de março. A casa estava silenciosa. Uma pequena bagunça havia se formado nos quatro cantos do cômodo da casa alugada pela única residente. Ana estava disposta a arrumar a casa e a vida durante as primeiras horas daquele dia quando abriu os olhos e, logo, olhou-se no grande espelho colocado ao pé da imensa cama que abrigava o corpo quente, ainda enrolado nos lençóis.
Decidida a não perder tempo consigo, pôs-se de pé e fez as recomendações em voz alta, para que apenas ela ouvisse.
- Varro, lavo o banheiro, coloco a roupa na máquina, lavo os pratos, passo pano na casa, estendo a roupa, almoço e faço minha unha.
Suspirou cansada ao pensar nas tarefas do dia. Começou logo a varrer a casa, envolvida no ritmo empolgante da música solta pelo ar. As ondas sonoras corriam cômodo a cômodo numa misteriosa perseguição pela pequena Ana, que concluía aos poucos a primeira tarefa imposta.
Já cansada e com ânimo inicial desgastado, a pequena residente deliciou-se com a água que corria garganta abaixo, matando a sede. O banheiro seria sua segunda tarefa naquele sábado. O sol penetrava na casa, irradiando-a de luz. Ali, no pequeno cômodo úmido, onde tantas vezes Ana chorou e desabafou em frente ao espelho, aguardava-lhe uma diminuta surpresa.
A moradora da casa 15 de uma rua paralela à principal em um bairro com nome de santo havia notado diversas vezes a ocorrência do aparecimento de um inseto comum em lugares de abandono higiênico: a barata. Ana vinha numa crescente onda de desleixo, com relação à limpeza geral da casa. Somente naquele sábado faria a faxina da humilde residência. Preparou o balde com os produtos de limpeza e esfregou cada canto do cômodo. O banheiro estava limpo e exalando essência de lavanda com um misto de pinheiro. Faltava, agora, recolocar os objetos no lugar. Embora o trabalho tivesse sido executado com sucesso, a asquerosa surpresa apareceu debaixo de um elemento de limpeza, com compartimento espaçoso que abrigou o pequeno e extraordinariamente venenoso escorpião durante tempo impossível de determinar. O susto paralisou Ana e fez seu coração acelerar, fazendo o suor escorrer e exalando medo. A respiração tornou-se pesada.
Seu último encontro com um animal da mesma espécie surtiu efeito parecido, porém, não estava sozinha. A ajuda ofertada no primeiro encontro fê-la permanecer em posição fetal, enquanto o escorpião era levado para um mundo diferente do dela. Agora, sozinha, ainda saboreava a inércia e olhava para o perigoso e minúsculo ferrão que a fazia surtar de medo. O cheiro do perigo pairava no ar e fazia com que a música tocada não fosse mais ouvida. Ana conseguiu engolir a saliva formada na boca entreaberta. Tentou controlar o ritmo respiratório e acalmou-se a ponto de erguer a arma do crime e matar o pequeno ser. O corpo ficou largado na porta do banheiro, enquanto a assassina bebia água e acalmava as mãos “manchadas de sangue”.
O dia conseguiu transcorrer, à medida do possível, normalmente. Logo no domingo de manhã, uma forte tristeza desmoronou a pequena Ana. Solidão ou culpa?
No mesmo dia, com a voz embargada, confessou o ato criminoso, tentando expurgar a maldade da cena que vinha em sua mente. Quatro dias se passaram. Confusões, choros e risos compuseram os dias dramáticos transcorridos.
Hoje, aos 25 dias de março de 2010, às 17 horas desta quinta-feira, Ana se dirigiu ao banheiro e teve um flash back de sábado.
- Não pode ser... – falou em um fio de voz.
Lá estava ele. Ressuscitado?! Preparado para o ataque. Com sua lança venenosa levantada e pronta para acertar ferroadas em sua vítima. A casca grossa da indefesa barata foi penetrada pelo ardiloso escorpião. Quantas vezes aquilo aconteceu antes da pequena Ana ter aparecido no banheiro? Quantas vezes a cena se repetiria até que Ana tomasse uma atitude?
Mais uma vez a respiração pesou, o coração acelerou, mas, num instinto de sobrevivência, Ana pegou outra vez a arma do crime. Um. Dois. Três golpes. Sua vítima já estava morta e, agora, ele era a vítima que jazia naquele banheiro. Ana olhou-se no espelho e enxergou quem havia se tornado. Não existia amis medo, não existia insegurança. Existia apenas a assassina... de escorpiões. Agora, havia adquirido a confiança necessária para executar os desígnios de sua própria vida.

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