domingo, 26 de fevereiro de 2012

Inverno na Cidade


Ouvi o som da porta. Ouvi o som das vozes dos meus pais. O jogo havia terminado. Minha mãe parecia orgulhosa do time que torceu. Meu pai não parecia chateado com a derrota. Sentaram na cama. “Ela gostava tanto quando o flamengo ganhava. Parecia que tinha vencido uma batalha contra mim.”, disse sorrindo, um sorriso trêmulo. “Ela gostava tanto desse lençol. Só porque foi com seu próprio dinheiro que comprou.”, disse acariciando o lençol. Podia senti-los perto de mim. Sentia suas respirações. “Onde ela pode estar?”, “Não se preocupe. Acho que ela pode nos ver. Só quero que ela saiba que eu a amo muito e que todas as discussões me faziam amá-la mais ainda.”, “Espero que ela nos ouça mesmo porque nunca tive a oportunidade de dizê-la sobre o amor que sinto por ela. Todos os contrários que sentíamos nos uniram de alguma maneira.”. Conseguia senti-los mais ainda. Transmitiam paz. Eu sentia o amor que falavam. Queria vê-los de novo, mas os olhos não obedeciam. “O que faremos com esse quarto?”, “Sinceramente, passei dias com medo de entrar. Hoje cedo vim e limpei tudo. Por enquanto, deixamos assim.”, “Ela não gostava dessas coisas jogadas. Não gostava de nada que não fosse verdadeiramente importante.”, “Então juntamos o que ela não gostava e deixamos aquilo de mais importante. Depois doamos as coisas dela. Como saber do que ela gostava?”. Ouvi um roçar de papeis. “Achei isso. Li as coisas que ela escreveu antes de... Eu li.”.  Estranho poder senti-los e não os ouvir. Ouvi ao longe as últimas palavras de ambos. “Nós te amamos, filha.”.
Consegui abrir os olhos. Uma luz forte incidia sobre meu corpo. Não era cinza. O inverno havia terminado. Eu flutuava. Era bom. Sem dor. Sem raiva.
Paz. Amor. Felicidade.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Inverno na Cidade


Parei de vagar pelo quarto. Estou deitada. Sempre deitada. Não sinto mais nada. Deve ser dormência. Não falo mais com ninguém há meses, não profiro nenhum som. Não ando mais por nenhum lugar. Não sinto mais meu corpo só a dormência de ficar deitada. Não sinto fome. Não sinto sede. Não abri os olhos hoje. Permiti-me que os músculos do rosto se retesassem num sorriso depois do meu último pensamento. “Acho que vivo como uma pessoa mor...”. Eu ainda ouço. E ouvi a porta se fechar. Era minha mãe. Sinto tanto sua falta.
Levantei. As pernas não atrofiaram. Abri os olhos e enxerguei o quarto cinza. Ainda! Gritei pela minha mãe, mas ela não voltou. Andei até a porta. Toquei a maçaneta. Girei-a e ela abriu. A luz forte do sol quase me cegou. Fechei-os instantaneamente. Voltei a abri-los. Tudo estava colorido. Sorri. Olhei meu corpo e ainda era cinza.
Vaguei até a sala. Ela e ele estavam lá. Assistiam ao jogo: vasco x flamengo - “Um clássico!”, pensei. Ela com a camisa do flamengo (nunca fizera isso) e ele com a do vasco. Esquisito estarem juntos daquele jeito. A televisão... Aquele tubo que projetava luzes coloridas capazes de refletir cor na casa inteira não me atingia. Eu ainda era cinza. Quis ser notada. Quero ser notada.
Fiquei enfurecida com o respeito que a televisão impunha neles. Gritei e não fizeram questão. Entrei na frente da TV e eles não me viram. Ainda podia ver a luz colorida do reflexo do jogo em seus olhos. Eu não existia. Pulei. Dancei. Tentei fazer tudo para que me vissem. Nada adiantou. Um pensamento voltou à mente: “Acho que vivo como uma pessoa mor...”.
Flutuei por cada canto da casa. O quarto deles. A cozinha. O banheiro. Tinha fotos minhas espalhadas pela casa toda. Eu sorrindo. Eu ainda criança. Eu chorando. Eu emburrada. Eu enlameada. Eu colando grau. Eu entrando na faculdade. Eu. Eu. Eu. Eu. Eu. Eu. Na sala, novamente, notei um porta retrato entre suas poltronas. Tinha três fotos. Uma grande no centro onde estávamos reunidos num piquenique. Outras duas pequenas de quando era bebê na primeira infância.
Não existia lágrima. Mas quis chorar. Voltei flutuando magicamente até meu quarto. Ainda estava cinza. Não conseguia me permitir afirmar estar mor... Deitei na cama. O cansaço veio. Não consegui impedir que meus olhos não fechassem. Num instante, meus braços estavam por sobre meu peito. Havia paz...

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Inverno na Cidade


Eu não sabia o que fazer naquela situação. O silêncio aparentemente acinzentado, como a luz solar, começava a me (ou nos) constranger. Cada dia que passava nos olhávamos menos. Minha mãe quase não saía do quarto, meu pai passava o dia deitado no sofá. Ela só saía para assistir a televisão. Eu vagava pela casa como um fantasma tentando descobrir a razão do leve tom cinza das coisas ao redor.
Da última vez em que fui me olhar no espelho não reparei em mim, observei apenas mais um sorriso escondido da minha mãe refletido no espelho. Fazia-me tão bem olhar aquilo. Uma onda de paz percorria meu corpo cada vez que ela entrava no meu quarto e sorria aquele sorriso escondido ao observar minha cama. Todos os dias ela repetia o ato. Parecia ser o único momento de amor que restara depois de tantas brigas.
Nunca mais falei com meu pai. Parece que finalmente o que sempre achei que sentia fazia sentido. Não tínhamos ligação alguma. Éramos a antítese perfeita: ele vasco, eu flamengo; ele da direita política, eu da esquerda; ele a favor dos protagonistas, eu dos vilões; ele falava qualquer coisa que eu discordaria no ato. Agora, nesse inverno cinza, nos afastamos de vez e isso é bom.
A vida lá fora não existia mais. Deixei meu café predileto e minha padaria predileta. Acho que nem como mais. Para não atrofiar os músculos das pernas, ando vagando pela casa. Quarto. Sala. Banheiro. Quarto. Sala. Banheiro. Quarto. Sala. Quarto. Sala. Quarto. Sala. Quarto. Sala. Só meu pai fica na sala. Quarto. Quarto. Quarto. Só vejo minha mãe quando ela vem à noite olhar mais uma vez meu lençol cinza.
Deitada na cama à noite, eu não consigo dormir. Nunca mais consegui dormir. Fico tentando descobrir o motivo do cinza. Tudo é cinza. Deve ser esse inverno, mas ele está demorando a passar. Na verdade, nunca me liguei muito nas estações do ano. Não entendo as quatro estações. Procurei livros sobre inverno, mas não acho. Meu acesso à internet não é mais possível porque não acho meu computador. Fico vagando pelo quarto, de um lado para o outro.
Há dias não vejo minha mãe. Não quero ir até a sala e encontrar meu pai. Não vejo ninguém há dias e tenho medo de atrofiar minha visão. Só vejo objetos. Aliás, a vida é tão superficial quanto minha visão de agora. Tenho medo de cegar. Tenho medo de não ver minha mãe. Tenho medo de tentar me ver no espelho. Olho para o chão e ele está cinza. Tenho medo.
A poeira está ligeiramente cinza. A janela permanece fechada, mas pela fresta consigo ver raios acinzentados do sol. Por que tudo é cinza? Por quê? O lençol, a cama, o chão, os móveis, as paredes, a cadeira, cada minúsculo objeto jogado no chão são cinzas. Será que apenas eu vejo assim? Talvez tenha crescido uma película fina na frente dos meus olhos e eu fiquei assim. 

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Inverno na Cidade


O inverno está diferente este ano. Mais frio. Mais cinza. Sem cor. Sem vida...
Quem disse que dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo?

Minha casa está sempre vazia, sem amor, sem carinho, sem esperança. 
As luzes permaneciam apagadas – o que nos favorecia, assim não tínhamos que ser obrigados a nos falar se não nos víssemos. Havíamos chegado de um enterro e os olhares fúnebres e distantes permaneciam no semblante. Usávamos cinza ao invés de preto. Tudo era cinza.
Fui para o meu quarto. Hoje não quis me olhar no espelho. Deitei na cama e sorri ao tocar no lençol cinza. “Que inverno!”, pensei. Minha mãe abriu a porta e olhou o lençol, retorceu o canto do lábio num sorriso escondido, mas não nos falamos.
Tem sido assim ultimamente: nenhuma palavra trocada. Isso começou com nossa última discussão, não lembro como se iniciou, mas lembro de cada palavra jogada ao vento, cada lágrima rolada e toda ofensa proferida. Meu pai não se envolveu, ele nunca se envolve, assistia ao futebol: vasco x flamengo - “Um clássico!”, disse. Depois só o silêncio.
Não tenho irmãos, nem amigos, só algumas pessoas a quem retribuo educação. Todos dizem que sou antissocial, mas apenas não “curto” conversas banais, só “curto” escrever... Pareço ser mais observadora, por isso, percebi o inverno diferente. As flores, no enterro, também eram cinzas. Tudo é cinza.
Larguei a faculdade há um ano. Meus pais pegam no meu pé por causa disso. Eles não entendem que já havia me alienado demais na última década escolar, não suportava mais os conceitos impostos pela “casta” superior na hierarquia educacional. Descobri que estudar ciências políticas não era para uma garota como eu. Queria recomeçar a sonhar meus sonhos como fazia na infância. Para falar a verdade, descobri mais ainda: os sonhos dos meus pais são vazios, uma caixa de Pandora sem nenhum sentimento resgatado. Talvez seja por isso que sejamos tão diferentes e brigamos tanto...
Acordei cedo e fui tomar café-da-manhã na minha padaria preferida. Foi difícil escolher entre pão cinza e bolo cinza. Tomei apenas um café “... e preto e quente...” que nada! Tudo é cinza. “Preferia estar em ‘João e Maria’ e comer delícias coloridas”, mas não me permiti ficar animada e deixar a criatividade fluir. Fui pagar o café cinza e o conhecido operador do caixa mal olhou para mim. Deixei os trocados no balcão e voei até minha casa. Meus pais permaneciam do mesmo modo quando saí: ela sentada na varanda, ele, deitado no sofá. Nenhuma palavra trocada. A luz do sol era aparentemente cinza. Tudo era cinza.