sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Sem nada para fazer

Acordei e estava, mais uma vez, só.
Li algumas coisas e descobri que as únicas companhias nos últimos tempos eram o café e um livro.
A casa estava revirada: roupas jogadas, cama desarrumada, pratos para lavar, uma pequena bagunça na sala.
Não havia nada de errado comigo, apenas sabia que naquele momento o que mais importava era aproveitar o ócio e deixar que as horas seguissem sem pressa.
Tinha esquecido como era bom estar no lar e vê-lo tão perto de mim, intrinsecamente ligados pela sensação de paz que invadia nossos cômodos.
Continuei deitada no sofá. Lia, sorvia goles de café, inspirava e deixava a ociosidade invadir cada vez mais fundo, expirava e o sorriso percorria os lábios.
Não pensei em fazer mais nada além de ficar sem nada para fazer.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

"Borboletas na janela"

Elas voam sem direção. Vem de algum lugar desconhecido. Encaram aquele disco giratório fatiador de insetos e, sem medo, se atiram sobre ele. O disco, por sua vez, insiste em tirar-lhes a vida, mas hora ou outra tendem a sobreviver e ressurgem num caminhar de passos mais lentos do que o normal. Antes voavam, agora caminham. Colocam-nas de volta nas janelas esperando que reaprenderem a voar da mesma maneira que reaprenderam a viver depois de fatiadas no disco giratório.
São jovens e pequeninas. Atiram-se sobre qualquer coisa que chamam atenção. Sua expectativa de vida é de poucas horas, dois dias no máximo, mas elas querem experimentar aquela sensação do perigo. Enclausuradas por quase toda uma vida, quando soltas na paisagem querem dar shows de exibicionismo. 

Um circo de horrores!
Pobrezinhas!
Caem aos montes naquela sala onde, ao invés de se estudar comunicação, estuda-se a ação suicida das borboletas.

Trabalho (IN)digno


Eles trabalharam mais de um mês de graça e ninguém se disponibiliza a fazer nada para mudar essa situação.
Eles pagam suas passagens de ônibus e sua comida para continuar trabalhando e ninguém se disponibiliza a fazer nada para mudar essa situação.
Eles limpam o que os alunos fazem questão de sujar sem tomar consciência da podridão de suas almas e ninguém se disponibiliza a fazer nada para mudar essa situação.
Eles têm famílias para cuidar, filhos para alimentar, contas para pagar, vida para seguir e não receberam seu salário de setembro ainda e ninguém se disponibiliza a fazer nada para mudar essa situação.
São eles que levam adiante a limpeza de nossos banheiros, dos corredores, das salas e não recebem mais para isso e ninguém se disponibiliza a fazer nada para mudar essa situação.
O medo oprime, reprime e cala os trabalhadores.
“Eu posso ser demitida, mas quero sair daqui lutando pela minha dignidade”, aos prantos o trabalhador revela suas condições, mas, hoje pela manhã, sua voz foi silenciada. Talvez amanhã já não esteja mais empregado.







Vetada a filmagem do vídeo com os trabalhadores da terceirizada da UFAL.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Não são fogos de artifício


Não era natal nem ano novo nem São João, mas todos corriam e se aglomeravam em volta de algo.  Escutei quatro estampidos que pareciam estar perto e ouvi as crianças que brincavam na rua gritarem, assustadas. Não sabia o que era. Fui até o portão e lá observei pessoas vindo de todos os lugares, as pessoas desciam dos ônibus e paravam junto às outras, vinham de bicicleta só para olhar o que os outros olhavam. Continuava no portão.
As crianças que antes corriam assustadas voltavam e vinham outras acompanhadas de suas mães. A curiosidade movia aquelas pessoas. Eu fui movida por ela e comecei a caminhar. Seguia, a passos lentos, o caminho que antes elas traçaram. Pessoas cochichavam segredos, verdades, sonhos... a vida em sussurros aos poucos era revelada. Minha antiga profissão me ensinou a escutar tudo e todos, observar tudo e todos para desvendar o que realmente acontecia por detrás das máscaras das mentiras.
Tinha tanta gente em volta que não sabia ainda o que poderia ser, mas fazia ideia por experiência de vida. Cada vez mais as pessoas vinham, cada vez mais as crianças vinham. Uma mãe e sua filha pararam do meu lado, a primeira não aparentava mais que 20 anos, a menor, cinco no máximo. A menina comentava: “Foi daqui que saiu os fogos, mamãe?”, a mãe balançava a cabeça num sinal positivo sem dar muita atenção.
Não pude ver o corpo que jazia no asfalto. Depois de ouvir tudo o que diziam, eis seu perfil biográfico: senhor de 40 a 50 anos, loiro; apelido: Alemão; estava sentado na calçada quando foi atingido cinco vezes, uma no peito e as outras na cabeça; tio de alguém que chorava entre a multidão. A polícia não chegou logo. O IML não se importou em se apressar. Cinco minutos depois de ser atingido, ainda respirava lentamente e as pessoas ao redor gritavam: “Chama a SAMU!” e continuavam a olhar sem mover sequer um músculo, além do coração.
Quanto a menina e sua mãe, escutei um último diálogo: “Sabe o que aconteceu?”, a mãe perguntava à uma outra mãe que também estava ali com sua filha. Quem respondeu foi a menina de cinco anos que gritava para sua coleguinha: “Não foram fogos. Foram tiros...”.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

A imaginária vida de Anne


Eu sabia onde estava. Eu estava no vazio da mente. Depois de um longo tratamento, me libertei das grades ilusórias que não me permitiam ser quem eu realmente sempre fui: Ana, T.G. e Tatiane. Naquela sala, através da janela, eu as vi sorrindo para mim, mas cada vez que eu piscava me distanciava mais delas. Eu as tinha guardado na mente. Eu vivia dentro da minha mente.
T.G. minha personagem da vida adolescente que imaginei viver.
Ana minha personagem da vida jovem que imaginei viver.
Tatiane minha personagem da vida envelhecida que imaginei viver.
Eu, dentro da minha vida imaginária, era todas elas em cada fase da existência. Minha infância me calou. Estou calada. Mas minha imaginação vive dentro de mim. Sou um mundo, um universo intangível dentro da mente.
Ainda estou em tratamento na clínica psiquiátrica. Meus pais sucumbiram à minha doença e abdicaram suas responsabilidades. O médico é legal. As enfermeiras são legais. Têm outras crianças aqui também. Eu ainda não escrevo. Vivo imaginariamente minha vida. E, durante a análise, conto minhas histórias.
Talvez, quem sabe, eu posso ser cada uma das minhas personagens e viver aquilo que elas viveram. A vontade de escrever, de ler, de sentir prazer, de ter amigos, de tomar café compulsivamente e fumar (como as enfermeiras daqui), de envelhecer sem ter filhos, de ter todos os problemas que elas tiveram, é, talvez, eu até queira isso para mim.  Mas por hora, observarei apenas.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

A imaginária vida de Anne


Minha morte. Envelheci sozinha e morri da mesma maneira. Não foi fácil. Um processo doloroso, mais doloroso do que a morte em vida que sofri durante metade da minha história. Doeu saber que não escreveria mais, não leria mais, não respiraria mais. Doeu perceber que daquela doença não tinha como escapar, talvez nem quisesse realmente. Quando se está cansado, aceitamos o que vier.
O hospital deu total assistência. Era próprio para alguém que tinha câncer. Todos os dias vinha alguém me dar carinho e amor que eu, finalmente, sentia pela simples presença das pessoas. Alguns me ajudavam lendo romances, contos, crônicas, poesias. Eu prosseguia observando tudo.
O corpo não aguentava tanto como a mente. Ela sempre fora mais forte do que ele, no final eu percebi. De madrugada, eu sentia mais dor. Era um incômodo estar na presença da morte e ter que esperar a hora certa daquilo tudo acabar. Os remédios não adiantavam mais, porém, se eu dissesse isso aos médicos eles tentariam amenizar minha dor. Eu não queria amenizá-la, queria partir.
Num dia chuvoso, com raios e trovões, eu gemi alto de dor, sorri, fechei os olhos e parti. Minha morte fez-me voltar a enxergar aquilo que realmente sempre fui.

domingo, 9 de outubro de 2011

O Vale II

"O pulso... está... Ela ainda vive!".
Ouvi uma voz desconhecida. Parecia-me alegre. Havia tantas almas perdidas ali que poderia ser de qualquer um. Avistei uma garota que tinha mais ou menos minha idade. Tinha olhos claros, pele clara e cabelos ruivos e longos. Agonizava mais do que os outros, apenas eu me mantinha quieta e pacífica no VALE. Não sabia o nome dela e a apelidei de Clara. Gostava daquele nome. Clara debatia-se imersa na lama. Não tinha voz, mas seus olhos gritavam e seus lábios grunhiam a dor que sentia. Clara sofria mais do que todos porque ela não pertencia completamente àquele lugar.   

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

A imaginária vida de Anne


Minha velhice. Não casei. Não tive filhos. Não tive netos. Envelheci sozinha. No mesmo apartamento. Trabalhando para a mesma editora. Eu continuava a mesma com algumas rugas a mais, algumas rusgas também. A família foi morrendo aos poucos como toda pessoa que fecha um ciclo de vida. Novos familiares foram surgindo, mas não os conheci. Não voltei à clínica, não voltei aos remédios, não voltei ao terapeuta. Afinal, depois de tantos anos a gente aprende como viver sozinha sem precisar da ajuda de ninguém.
Adoeci várias vezes. Tenho problemas estomacais desde a juventude. Tomar café, e só café, por um dia inteiro tem consequências. Voltei do hospital com o último exame. “Câncer no estômago”, falei alto e aquilo ecoou pela casa toda. Não procurei amigos nem família, sempre estiveram ocupadas demais com suas vidas, suas histórias.
Não tinha o que reclamar sobre esse fim. Eu, depois de tudo, vivi. Aprendi a viver na verdade. Não reclamo da infância, da adolescência, da juventude nem mesmo da velhice com problemas de saúde. “É. Enfim, eu sou doente”, disse sorrindo. Nunca quis envelhecer. Não tinha pretensão de chegar à velhice. Estou aqui. Criei muitos personagens, escrevi muitas histórias. Escrevi minha história. Minha velhice fez-me contar a minha grande verdade: sou doente.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

O Vale

Andei o mais que pude para longe da lama que cobria almas desencarnadas, porém, não tive sorte. A morte amiga já havia debruçado-se sobre mim. Não chorei nem gritei, apenas andei para longe sem notar que estava no mesmo lugar.
Se antes o que me incomodava era o meu sofrimento, agora, os lamentos sôfregos não me deixavam ter paz. "Paz", então é isso que se sente depois de partir? Não!, é aí que eu grito.
Não!, reafirmo numa voz estridente. Não é desespero, é desesperador estar aqui e ouvir aqueles lamentos...
Arrancaram-me a vontade de viver, no entanto, eu deixei que a vida escorresse pelos pulsos que não mais pulsam.

O lobo

Quando o vi, estremeci.
Era grande, olhos vermelhos, expressão de fome (de vingança?), mandíbula entreaberta e uma mordida pesada e doída. Seus dentes quebravam ossos, rasgavam músculos como papeis, penetravam almas. Suas garras abraçavam a presa e as unhas cravavam autoridade sobre a pele.
Mais uma vítima dentre tantas outras.
O animal não parava, não dormia, não deixava sobreviventes. O animal destruía o corpo, a alma, a voz. O animal não se importava com sexo, religião, etnia ou idade.
Eu tinha medo de que chegasse minha vez.
Não percebi que suas garras haviam aprisoado-me. Ele chegou lento e me abocanhou. Tentei lutar, mas se corresse ou ficasse talvez nem fizesse diferença. Fechei os olhos e, quando abri, "MEU DEUS!". Aquele animal não era diferente de mim.
O homem animalizou-se e é "lobo do homem".

domingo, 2 de outubro de 2011

A imaginária vida de Anne


Minha juventude. Eu passei pela clínica psiquiátrica, não morei. Quando saí de lá, assinei contrato com uma editora que, inacreditavelmente, lia minhas histórias e gostava. Morava num apartamento de um quarto, sala, cozinha e banheiro, uns diriam: quitinete. Morava sozinha. Não tinha amigos, apenas conhecidos. Não saía de casa com frequência, mas ainda tinha que fazer terapia e usava medicamentos para dormir.
Não sou doente”, repetia pra mim todos os dias na esperança de que aquilo se tornasse uma de minhas verdades inventadas. Conheci algumas pessoas, reencontrei outras, beijei homens, beijei mulheres, fiz sexo, namorei, bebi, parei com a terapia, parei com os remédios e comecei a viver por minha conta. No final, minha mentira se tornou uma verdade como planejado. Sou formada em jornalismo, umas das profissões da infância, exerço a profissão escrevendo. Apenas escrevo.
Para criar histórias, observo as pessoas. Seu jeito de caminhar, de falar, de gesticular, de olhar. Observo o mundo. Observo a natureza. Observo minha família. Observo os amigos que conquistei (poucos, aliás). Observo os animais. Observo tudo. Enxergo a vida através da janela do meu quarto.
Minha juventude fez-me aprender a viver. Aprendi a sentir muito mais do que a dor da prisão ilusória da mente.