quarta-feira, 28 de setembro de 2011

A imaginária vida de Anne


Minha adolescência. Eu já não vivia. Seguia. Seguia os passos das outras pessoas porque não sabia o que era a vida realmente, não sabia como vivê-la. Não me ensinaram a ouvir, olhar, falar... acho que nem a sentir. Não sentia nada além da dor de estar encarcerada dentro de mim.
Quem pode nos ouvir quando não falamos? Quem pode nos enxergar quando não enxergamos a nós mesmos? Quem pode falar conosco quando todos tinham que seguir suas vidas para alcançar o topo de suas histórias? Eu não existia realmente (nem sei se hoje existo). Robotizei-me como qualquer um faz quando repete as ações muitas vezes. Eu repeti a mesma mentira pra mim e ela se tornou minha verdade. “Você não existe. Faz parte da sua imaginação como todas aquelas histórias da infância”.
Aprendi a escrever. Fui obrigada. Frequentei uma clínica psiquiátrica e lá me disseram que alguma coisa eu deveria fazer para me expressar. O quê? Passei a ler, ler e engolir palavras, frases, histórias, vidas, personagens... Passei a ler e escrever. Transcrever, primeiro, aquilo que lia e depois de muito tempo eu criava personagens e aquelas palavras engolidas foram regurgitadas e formavam histórias, minhas histórias. Minha adolescência fez-me voltar a imaginar e eu comecei a minha história.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

A vida imaginária de Anne


Minha infância. O que me lembro? Como eu era? Começo a ver alguns de meus passos... Eu era pequena, frágil. Chorava por tudo e sorria pelos mesmos motivos. Eu dançava. Eu cantava. Eu lia. Porém, não escrevia. Não gostava de escrever histórias, gostava de vivê-las. Vivia histórias épicas, modernas, brincava sozinha, acompanhada, tinha filhos, era casada, fui professora, fui advogada, fui jornalista, mas eu era apenas uma criança.
Minha infância sofreu com acontecimentos trágicos. Eu sofri com acontecimentos trágicos. Superei-os (assim eu digo a todos). A boneca do papai e princesinha da mamãe se distanciava desse cargo cada vez que mais um dia raiava. Eu crescia e deixava de sonhar, de imaginar, de cantar, de dançar, de brincar. As lágrimas se tornaram mais frequentes do que o sorriso. Eu não entendia aquilo. Eu não entendo isso.
Minha infância passou. Ela me calou, amordaçou, tapou minha garganta e cortou minhas cordas vocais. Meus olhos não viam, não conseguiam enxergar e enviar a mensagem do que eu estava vendo para meu cérebro. Não ouvia os sons do mundo lá fora, do mundo aqui fora. Minha infância fez minha mente funcionar mais do que meu corpo.
Calei-me. Tapei os ouvidos. Fechei os olhos. Aprisionei-me nas grades verossímeis paralelas ao real, me aprisionei dentro da mente. Minha infância iniciou minha vida.

domingo, 18 de setembro de 2011

A imaginária vida de Anne


Abri os olhos. Não sabia onde estava. Nunca soube onde estar. Nunca tive um lugar só meu. Além do meu lugar predileto: minha mente, claro. Tudo estava escuro. Tateava e encontrava só o espaço. Espaço entre um pensamento e outro. Espaço entre uma vida e outra. Espaço... Só há espaço.
Lembrei-me da infância, da adolescência, da juventude, da velhice e da morte tão trágica. “Onde estou?”, “O que está acontecendo comigo?”, “Tudo pode ser possível quando imaginado”. Não queria mais ouvir aquilo. Estourava meus tímpanos. Meu ouvido doía. Minha mente doía. Meu corpo... meu corpo? Eu não estava nele, isso eu sabia.
Sempre me imaginei sendo um nada. Mas como o nada se parece? Como saber o que, quem, como, onde, por que eu era? Sou uma personagem? Sou real? Tenho vida? Eu existo? Tinha lembranças... isso é prova de que vivi? Tinha pensamentos... isso é prova de que existi? Eu não sei. Na verdade, nunca sei de nada realmente. Engano-me e os engano dizendo que sou forte, existo, vivo... respiro.
Um nada. Um zero à esquerda, uns diriam. Mas qual é a verdade? Onde ela se encontra? Por hora, agora, nesse instante, nesse vazio, nesse tempo a única coisa que penso saber é que não estava no meu corpo. Estava no vazio. De quê? Eu também sei.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

A imaginária vida de Anne


O vidro da janela estava limpo daquela vez. Podia olhar o jardim lá fora. Gosto da natureza. Porém, ali só havia grama. “Quem é aquela?”, apontei para uma mulher sentada com um livro na mão esquerda e um lápis na direita. “O nome dela é Ana”, ele respondeu. Surpreendentemente a ética profissional de não falar sobre seus pacientes não o deteve naquele momento. “Ela está aqui porque sofre não sabendo quem é. Sente-se usada por ela e pelo mundo. Acorrentada entre as personagens que cria e o mundo verossímil”. Apontei para uma menina que também estava no jardim. “Seu nome é T.G. Tem 18 anos e está aqui desde seus quinze. Pediu para ser internada. Sofre por não conseguir ser mais do que ela realmente é. Cansou de pedir para morrer e quis tirar folga de si vindo para cá”. “E aquela outra que conversa com elas?”. Ele contemplou o nada por um tempo. “Tatiane Gomes. Ela vem aqui todos os dias regar”, enfim falou. “Mas só tem grama no jardim”, retruquei. “Quem disse que rega o jardim? Ela rega a consciência das outras”. “Isso é possível?”. “É possível um médico falar de outro paciente para o seu atual?”, esperou que aquilo atingisse fundo na minha consciência. “Tudo pode ser possível quando imaginado”.
Olhei para as três no gramado. Olhei para o espelho que havia aparecido num passe de mágica na minha frente. “Por que isso está acontecendo comigo?”, voltei a questionar. Éramos/somos nós. Costumo me dividir em múltiplas vidas e agora não sabia qual delas viver ou se ainda restara alguma vida a ser vivida. “Tudo pode ser possível quando imaginado”, a voz dele ecoava em minha cabeça que girava em volta das minhas próprias memórias. Olhei pela janela e tudo era mais distante que o natural. Ana, T.G. e Tatiane sorriam para mim, mas cada vez que eu piscava me distanciava mais delas. Eu precisava de café. E mais um cigarro. Eu precisa, na verdade, conseguir (des)escrever tudo aquilo.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

M.T.

Você falou em saudades... De como nos entendíamos sem nos entender direito... Quando você falava baixo e virada para o outro lado e ainda exigia que eu escutasse tudo mesmo sabendo que de um ouvido não escuto direito... Saudade você falou/escreveu. É... tem razão. As coisas parecem mais complicadas quando tudo o que conquistamos juntas ficam estáticas - entenda: não ficam para trás, mas presas no tempo.
Eu falo em saudades... De como não discutíamos (aquela vez não contou. O quê? Meia hora sem nos falar? Isso conta?!)... Quer saber... acho que todos devem ter uma ponta de inveja na nossa amizade. Por quê? Ora, a gente não usa máscara para conviver, para nos entender, para conversar de tudo e mais um pouco além.
M.T., prometi ser feliz. Hoje prometo que não vou deixar que a saudade dure muito.




Vou te ligar hoje! 

A imaginária vida de Anne


Amassei mais uma folha de papel. Todas as palavras que nela continham já estavam riscadas ou interminadas. “Como isso está acontecendo comigo?”, nos últimos três meses fazia-me essa mesma pergunta. Não saía de casa na esperança de poder achar alguma palavra dentro da mente e pô-la no papel. Quando vinham me chamar novamente, bocejava e respondia estar cansada e com sono. Cansada de quê? De não conseguir mais fazer a única coisa que me fazia sentir que estava viva? Sono? Não era uma ardência nos olhos de tanto chorar?
A cesta estava tão cheia que os papeis amassados começavam a cair. A casa estava cheia de vazio. O pó dos móveis era minha companhia. As fotos pareciam irreconhecíveis sob as teias das aranhas. Detesto aranhas, por isso, continuava no quarto. Levei a cafeteira para lá e fiz do lugar meu refúgio. Da última vez que saí de casa não me olhei no espelho e não sabia o estado que estava e fui comprar minha droga predileta: cafeína. Ao chegar, me olhei no reflexo do portão. Sorri tristemente constatando o motivo das pessoas tanto me olharem na rua.
“Três meses”, continuava a falar sozinha. Eu gritava, na verdade. “Como isso está acontecendo comigo?” Eu vivia disso. Psicologicamente era minha terapia. Financeiramente, meu sustento. As palavras fugiram, nem elas conseguiram suportar a solidão e a umidade da casa... e a minha. Havia pedido para trabalhar em casa numa maneira de me proteger dos males do mundo e agora descobri que sem o mundo o mal ainda me acompanha.
Não conseguia nenhum manuscrito meu. Fui até minha máquina de escrever predileta que ganhei de presenta da minha mãe depois de garantir o primeiro lugar num concurso de contos, mas foi em vão. No computador foi pior ainda: detesto escrever nele porque a página em branco me assombra. Nem ao menos uma mensagem no celular conseguia escrever. Pensei em gravar meus pensamentos depois que passassem pelos meus lábios, mas calei-me.
Dormi. Acordei. Tomei café. Traguei meio cigarro. Tomei café. Tentei aliviar o corpo num banho gelado e demorado. Porém, o corpo está acostumado com essa vida, mas a mente não. Pensei em voltar a tomar meus remédios. Se eu fizesse aquilo, teria que voltar à clínica. Detesto consultas psiquiátricas. Fechei os olhos, pelo menos assim eu poderia voltar a viver como sempre imaginei que vivia.